sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O Que Você Vê é Reflexo do que Está em Você

Hoje vou lhe contar uma história. Um pouco singela, mas ainda assim interessante para aquilo que você procura entender. Contarei a história de duas maneiras, uma sob meu ponto de vista privilegiado e outra sob o ponto de vista do protagonista deste pequeno conto. Ele, um sujeito um tanto paranóico que vê muito mais do que realmente existe, e por isso sempre acaba caindo em suas próprias mentalizações. Antunes é seu nome.

De família normal, com um trabalho normal, com uma vida normal, Antunes não deveria ser tão paranóico, mas o é. Certa vez, trabalhando em seu cubículo, cismou que seu computador estava sendo monitorado por agentes do governo, visto às ações estranhas que ocorriam em seu sistema operacional, como programas que se encerravam sozinhos, aplicativos que travavam e uma crescente lentidão. Mas o que não presumiu era que se tratava apenas de um vírus que, por descuido dos técnicos da empresa, conseguiu invadir o sistema.

Mas assim era Antunes, tentava encontrar a explicação mais complexa para tudo. Agora, o que aconteceu sob seu ponto de vista...
Casado há 5 anos com uma mulher por quem daria a vida, sua desconfiança aumentava junto com sua dependência. Achava que Eliana era boa demais para ele, e por suas tempestades mentais, Antunes acreditava que cedo ou tarde ela o iria abandonar. Logo, passou a vigiá-la dia e noite, porém de forma discreta. Sua paranóia servia para algo, afinal.

Todavia, nesta última semana, Eliana estava irrequieta e distante, até um pouco eufórica. Antunes perguntava a cada dez minutos o motivo, mas ela simplesmente deixava o assunto morrer dizendo não se tratar de nada. Ora, ali havia algo, Antunes não tinha dúvidas. E por Eliana não mais procurá-lo amorosamente, para nosso protagonista isso era um alarme de incêndio.

Ao meio-dia de ontem, Antunes aproveitou seu horário de almoço para ir até onde Eliana trabalhava. Ficou do lado de fora do prédio de sua empresa, à espera como fizera nos últimos dias.

Eliana sempre saía para almoçar em um restaurante a duas quadras dali, e ontem não foi diferente. Todavia, Antunes percebeu algo diferente, um olhar diferente em sua esposa. Algo que beirava à ansiedade e à felicidade ao mesmo tempo. Pobre Antunes, sua mente começou a imaginar um monte de bobagens, fazendo-o sentir-se desconfiado e frustrado.

Eliana foi ao restaurante de sempre, todavia não entrou de imediato. Para a surpresa de nosso protagonista, ela parou para conversar com um homem, cujo sorriso, assim como o dela, ofuscava tudo ao redor. Era um homem que certamente não passava dos 25 anos. Era alto, musculoso e muito mais bem afeiçoado que nosso protagonista.

Algo que intrigou Antunes foi o abraço forte e demorado entre sua esposa e aquele homem. Bem, até aí, nada demais.

Mas o que veio depois foi chocante. Ele pareceu ter visto os dois se beijarem na boca. Não pôde ver claramente, pois um carro passou por perto e os raios de sol refletiram no vidro diretamente em sua direção, dificultando a visibilidade. Mas pelos movimentos que pôde perceber, não restavam dúvidas: foi um beijo.

Eliana e o homem entraram no restaurante de mãos dadas e isso foi o estopim de uma sucessão de eventos que sem dúvida ficariam marcados para sempre na história de Antunes. Este voltou para a empresa, sentou-se em sua cadeira e ficou pensativo.

No começo da noite, Antunes já estava em casa quando Eliana chegou duas horas mais tarde pela quinta vez em poucos dias. Observava-a do sofá da sala, a tevê ligada, mas nada sendo realmente assistido.

- Oi – disse ela, com um sorriso discreto.
- Oi – Antunes sorria, mas de forma soturna.

- Nossa, eu demorei, pois fiquei presa no trânsito. Teve um acidente grave bem à minha frente. Um caminhão tombou e atingiu três carros. Tudo ficou parado.
- Ah, sim. Que pena – foi o que saiu da boca de Antunes. Mas sua mente já imaginava sua adorada esposa em um motel com o garanhão do meio-dia. Ah, os detalhes que sua mente criava eram assombrosos
.
- Já jantou? – perguntou ela.
- Ainda não.
- Nossa, estou louca para tomar um banho.

Enquanto ela tomava banho, Antunes fuçou em sua bolsa e para sua surpresa encontrou uma foto emoldurada de Eliana e do garanhão do meio-dia. Este a abraçava por trás, com os braços por cima de seus ombros, em um gesto de carinho, e os sorrisos de ambos eram de pura felicidade. Nosso protagonista não saberia explicar o que era mais irritante: o abraço ou os sorrisos. Guardou de volta a fotografia e retornou à sala de estar.

Sua mente ia longe. Lembrou que tudo aquilo começara há cerca de quinze dias com um telefonema misterioso. Eliana atendera e conversava com muita intimidade com quem quer que fosse. Antunes, paranóico assumido, já ficou atento. Nos dias seguintes, sua esposa sempre chegava mais tarde do trabalho e os motivos eram vários. Ou porque houvera um acidente de trânsito, ou porque fora numa happy hour com amigas do trabalho, ou porque o pneu furara, etc, etc, etc. Ah, aquilo não o enganava, não senhor.

O telefone tocou. Ao atender, a surpresa: uma voz masculina perguntando por Eliana.
- Quem está falando? – perguntou Antunes em um tom assustadoramente tranquilo.
- Rogério – “Ah, então o garanhão do meio-dia se chama Rogério...”
- É pra mim? – perguntou Eliana descendo as escadas e pegando o telefone sem esperar a resposta de Antunes.

“Mas o que é isso? É alguma piada? Parecem que não sabem que estou aqui!”
- Sim, claro. Já estou indo – dizia Eliana, logo após desligando o telefone.
- O que houve? – perguntou Antunes.
- Era o irmão da Guilhermina. Disse que ela brigou com o namorado e está transtornada. Ele me pediu para ir vê-la.

- A essa hora?
- É minha amiga.
Minutos depois, Eliana saiu de casa. Antunes, que estava prestes a explodir, decidiu segui-la.
Mantendo uma distância segura do carro de sua esposa, Antunes imaginava mil e uma formas de dar o flagra. Ah, aquela sensação seria ótima. Nada se compararia à sensação de desmascarar uma mentirosa e traidora! E na verdade, ele torcia para que ela o traisse. Seria ótima a sensação!

No meio do caminho, porém, Eliana parou o carro e Antunes pôde perceber que ela falava ao celular. “Deve ser o garanhão do meio-dia”. Segundos depois, ela prosseguiu seu caminho, todavia seguindo uma direção contrária à casa de Guilhermina. “Ah, eu sabia! Você mentiu pra mim!”

Eliana estacionou em frente a um condomínio, foi à portaria e minutos depois, alguém a recebeu do lado de fora. Adivinhe quem foi? Sim, o "garanhão do meio-dia". Mais um abraço apertado...
Antunes ainda dentro do carro, agora estacionado no final da rua, assistia àquilo perplexo. Porém já não podia mais se conter. Saiu do carro e caminhou decidido rumo àquela pouca vergonha. Ah, caro leitor, isso vai ser interessante.

- Sua vadia! Quer dizer que anda me traindo? – bradou Antunes.
- Antunes? O que faz aqui? Você me seguiu?
- Não é óbvio, sua traidora?
- Espere aí, não fale comigo desse jeito. Você não sabe...

Antes de terminar de falar, Eliana viu seu marido atingir um soco no rosto de Rogério que, apesar de seu tamanho, deu vários passos para trás. Antunes, ah, estava em seu momento. Quem disse que ele era paranóico? Quem disse que não tinha razão? Aquele era seu momento de glória!
- Antunes! O que está fazendo? – gritou Eliana em desespero.

- Cale a boca! De você cuido depois – disse Antunes olhando ferozmente para ela. Mas antes de voltar-se novamente para Rogério, foi atingido por uma tijolada sem precedentes, assim foi o que pensou. Na verdade era o punho fechado de Rogério atingindo-o violentamente.
- Seu otário! – gritou Rogério.

Não vou dizer que Antunes apanhou feito um boneco de trapos, mas sem dúvida desafiar um homem duas vezes maior que ele foi uma burrice e tanto. Mas até mesmo aquilo, até mesmo a dor, era prazerosa uma vez que conseguira desmascarar sua esposa.
Transeuntes e moradores locais apartaram a briga, a polícia chegou minutos depois e o clima foi lentamente se acalmando.

- Agora pode me dizer o que está acontecendo aqui? – perguntou um policial.
- Essa vadia está me traindo com esse mané! – bradou Antunes.
- O quê? Você está louco – disse Eliana.
- Senhor, baixe a voz e mantenha a calma – disse o policial. – Isso é verdade, senhora? – perguntou à Eliana.

- Claro que não, policial.
- Não venha me dizer que não é verdade! – gritou novamente Antunes. - Eu vi vocês hoje à tarde na frente do restaurante onde você almoça. E você chegou do serviço duas horas mais tarde.
- Eu disse que houve um acidente...

- Eu vi os dois se beijarem!
- O quê? Claro que não, Antunes! Este homem...

- Ah, cale a boca! Se não fosse esse b***** me segurando eu quebraria a sua cara também!
Sim, caro leitor, ele disse isso. O “babaca” em questão era o policial. Bem, já sabe o que aconteceu, não é? Antunes foi algemado, teve o ombro quase deslocado pela força do policial e bateu a cara com tudo no capô do carro. Mas isso não foi nada se comparado ao que ouviu de sua esposa. “... este homem é meu irmão”.
O que realmente aconteceu? Eis o que vi com minha visão privilegiada.
Eliana fora criada pelos tios desde os dez anos de idade. Seu irmão, três anos mais jovem, fora morar nos E.U.A com o pai e desde então ambos não mais se viram. Ela chegou a falar disso com Antunes, que para ser bem franco, nem deu bola.

Há cerca de quinze dias, ela recebeu uma ligação de seu irmão, dizendo que estava voltando para o Brasil. Imagine a alegria da moça ao saber que iria rever seu irmão depois de tanto tempo?
Por que ela não contou nada a Antunes, você se pergunta. Ora, Eliana sempre foi muito reservada e seu relacionamento com Antunes não estava bem já fazia alguns meses. Embora ele acreditasse que estava tudo bem, ambos pouco se falavam e já não dormiam juntos há um bom tempo. Ele sempre fora paranóico e cego de paixão. Não sabia quando as coisas não estavam boas.

Eliana almoçava com o irmão todos os dias desde então. Havia muitas coisas a serem colocadas em dia, novidades sem tamanho. E nada mais natural que aproveitarem os momentos livres para isso.
E sim, houve um acidente de trânsito neste dia. E sim, o pneu realmente furou na terça-feira, sim, realmente Eliana saiu com amigas na sexta-feira e sim, ela ficou até mais tarde na empresa quinta-feira passada. Eventos que de fato aconteceram no mesmo período. Quais as chances? Duas apenas: a de acontecer e a de não acontecer.

Rogério era de fato irmão de Guilhermina. Já o irmão de Eliana se chamava Cláudio.
E a parada no caminho para a casa de Guilhermina? Ora, Cláudio conhecera a amiga de Eliana e se encantara por ela, ficando muito animado ao saber que seu namoro não estava indo muito bem. Coincidentemente ou por meio da causalidade, ele telefonou para o celular da irmã perguntando o número do telefone de Guilhermina. Como estava indo para a casa dela, Eliana acabou convidando-o a acompanhá-la; que ele servisse de ombro amigo! Eis o porquê de ela ter passado na casa de Cláudio.

O que Antunes viu e presumiu foi apenas aquilo que ele quis ver e presumir. Mas não correspondia à verdade dos fatos.
E o que ele ganhou com isso? Quais foram as consequências?
Vários hematomas e um nariz quebrado pela briga com Cláudio, uma passagem pela polícia por desacato, um divórcio que já estava, a bem da verdade, previsto cedo ou tarde e uma cara de bobo por se deixar levar por sua mente paranóica.

Tudo isso porque um carro refletiu a luz do sol bem no rosto de Antunes, impedindo-o de ver que não houve beijo algum, apenas outro abraço entre irmãos.
Moral da história:


Viver de maneira intelectual não gera paz, tranquilidade ou felicidade. Uma raiz doente não pode gerar uma árvore saudável. Sendo o ego a origem do intelecto, e estando ele já desconstruído pelos condicionamentos da sociedade, da religião e da própria filosofia, conhecer a verdade e ter o autoconhecimento baseando-se no intelecto é, sim, uma utopia.

Apenas na morte do ego é que pode haver felicidade, paz e liberdade. Mas será possível matar o ego?

Marcos Keld
Um erro de interpretação primordial corrompe todo o conhecimento posterior a ele. Portanto, seja responsável.

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